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Tocantins e sua negritude merecem respeito

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Foto: Arquivo pessoal/ VB

Não queremos criar nossas filhas para serem serviçais das sinhazinhas de hoje, para serem estupradas pelos senhores de engenho dos tempos atuais, para parirem e deixarem de amamentar seus filhos para nutrir os filhotes da “Casa Grande”

*Por Paulo Palmares

O discurso do vereador Thiago Borges (PL), na tribuna da Câmara Municipal de Palmas desrespeitou um Tocantins com mais de 75% da sua população se declarando negra, de acordo com censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2022. A fala ameaçadora do parlamentar atingiu mais de 1,1 milhão de tocantinenses pretos e pardos que representam a miscigenação afrodescendente no Tocantins. A fala infeliz de um parlamentar branco que subjuga uma toda população negra, que também contribuem com seu salário é merecedor de apuração pelo Conselho de Ética e punição por parte da Casa Legislativa que ele ocupa uma cadeira.

O discurso do vereador Thiago Borges que afirma “Eu sei onde querem chegar. Eu sei qual é o suprassumo dessas intenções. Eu não vou permitir. Eu vou lutar contra”, soa de forma repulsivas aos ouvidos de um povo que lutou e ainda luta contra as amarras do racismo estrutural que perdura no intuito de subjugar pessoas pela cor da pele.  Busco palavras que qualifiquem a postura do vereador de Palmas Thiago Borges, que se denomina cristão e defende a distribuição da Bíblia nas escolas no entanto, prega na tribuna daquele parlamento tudo aquilo que Jesus condenou durante sua passagem pela terra.

O vereador Thiago Borges, desrespeitou também naquele dia 20 de março os 1.799 eleitores que certamente tem no sangue origem afrodescendente como mostra o censo do IBGE de 2022. O discurso sobre a não concordância do ensino da cultura africana nas escolas da rede pública de Palmas mostra o total desconhecimento da importância dessa cultura para a construção da identidade cultural do Tocantins e do Brasil e sua gente.

A primeira indagação que me vem à cabeça é: o que esse parlamentar realmente pretende com esse discurso de ódio? Gostaria de responder que, quando nossos ancestrais foram arrancados de várias partes do continente africano, com as bênçãos da cristandade, especialmente da Igreja Católica, nos roubaram os bens mais preciosos de um ser humano. Roubaram nossa DIGNIDADE. Separaram nossas famílias, demonizaram a fé religiosa de nossos ancestrais e nos converteram à força, sob açoites e ferro quente, a uma religião que pregava um “Deus de amor e bondade“, mas nos acorrentava aos grilhões enquanto nossa carne era estraçalhada no chicote sem nenhum amor divino.

Ao pisar nestas terras nos batizavam à força com nomes que não nos pertenciam, estupravam e violentavam nossas mulheres, matavam indiscriminadamente nossas crianças e, além de tudo isso, nos vendiam em praça pública como se fôssemos animais de carga, objetos, coisas… Leiloados, vendidos ou dados como presentes, tornávamo-nos propriedade de um “Senhor Thiago Borges” qualquer da época. Tudo isso era respaldado pela Igreja Católica, legalmente apoiado pelo Estado brasileiro e sustentado por uma sociedade espúria que acumulou riqueza às custas de vidas humanas inocentes que, muitas vezes, mal chegavam aos 30 ou 40 anos de idade.

Diante desse histórico, é praticamente impossível não ensinar a história negra neste país, onde a população negra/preta/parda corresponde a 56,7% do total, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do IBGE. No Tocantins, mais de 75% da população se declara negra (preta ou parda), tornando o estado um dos mais negros do Brasil. O IBGE também registrou que o Tocantins possui 36 comunidades quilombolas reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares.

Não ensinaremos apenas sobre o legado da culinária africana na cultura brasileira, como a feijoada, o acarajé, o vatapá, o caruru, o angu, o pirão, a canjica, a rabada, o cuscuz, a pamonha, a moqueca e o bobó de camarão, devemos ensinar sobre o quanto enricamos este país em todos os sentidos e quadrantes, que pese a tragédia humanitária que se abateu sobre nosso povo.

E a música, vereador? Os batuques trazidos pelos povos africanos, parte de cerimônias religiosas e festividades, deram origem ao samba, maracatu, afoxé, maxixe, choro e bossa nova. Instrumentos como o atabaque, o berimbau, o afoxé e o agogô são parte fundamental da identidade musical brasileira e têm origem africana.

Esse cidadão que recebe salário pago pelo povo, que destila ódio e preconceito em suas palavras, pretende promover um “apagão” na história do povo que, por 358 anos, foi escravizado, vilipendiado, torturado e demonizado, produzindo riqueza para seus “donos” e para o país. Ele não faz ideia de onde queremos e iremos chegar, queira ele ou não, goste ele ou não. A luta por tudo que representa dignidade na vida humana passa, necessariamente, pela LIBERDADE. Liberdade de tudo que seja lícito.

Assim como o povo negro sabe exatamente para onde quer ir e quais espaços deve ocupar, abriremos as portas principais dos palácios, sentaremos nas cadeiras das universidades, ocuparemos os espaços que nos foi é negado; fizemos e continuaremos fazendo história. Mas uma coisa está clara: sabemos para onde não queremos voltar. Não queremos voltar para as senzalas, não queremos criar nossas filhas para serem serviçais das sinhazinhas de hoje, para serem estupradas pelos senhores de engenho dos tempos atuais, para parirem e deixarem de amamentar seus filhos para nutrir os filhotes da Casa Grande.

Nossos caminhos são outros, pode ter certeza. E os trilharemos com a altivez de homens e mulheres que jamais se curvaram, com as bênçãos de todos os deuses e orixás e com o orgulho de olhar para a história e saber que figuras como Zumbi, Dandara, Antonieta de Barros, Luiz Gama, Irmãos Rebouças, José do Patrocínio, Tia Ciata, Juliano Moreira, Abdias do Nascimento, Machado de Assis, Carolina Maria de Jesus, Maria Firmina dos Reis e tantos outros continuam nos inspirando para a luta.

Vereador Thiago Borges, quando escutar a Canção de Amor a Palmas lembre-se que também é letra do afrodescendente Braguinha Barroso em composição com Neuzinha Bahia e mais: quando se deleitares ouvindo Águas de Março, um dos maiores clássico da MPB, composta por Tom Jobim, lembre-se as música é literalmente um ponto de umbanda. Axé.

Paulo Palmares, 62, é um homem preto, que mora há 35 anos na cidade de Augustinópolis, editor do portal Voz do Bico, membro da Alabip (Academia de letras e Artes do Bico do Papagaio).

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