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As causas do autismo no centro do debate

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Foto: Divulgação

*Por Lucelmo Lacerda

Vamos imaginar que um governo compre a tese de que há um fator ambiental predominante do Transtorno do Espectro Autista e queira fazer estudos para avaliar se isto é verdade e quais seriam esses fatores. Para entendermos como isso poderia ser feito é preciso, antes de tudo, compreender como uma pesquisa séria e bem conduzida precisaria ser estruturada.

Investigações dessa natureza não se resolvem em meses, tampouco com uma única equipe ou um laboratório isolado. Exigem décadas de acompanhamento, bilhões de dólares em financiamento, grandes equipes interdisciplinares e uma metodologia de altíssimo rigor.

Por exemplo, para avaliar se a exposição a metais pesados como mercúrio ou chumbo pode influenciar o desenvolvimento de TEA, o desenho ideal envolveria o acompanhamento de milhares de gestantes e seus filhos ao longo de muitos anos.

Seria necessário medir os níveis dessas substâncias no sangue, na urina, no ambiente em que vivem, desde a gestação até a infância, controlando outras variáveis como genética, alimentação, condições socioeconômicas e acesso à saúde.

Além disso, os diagnósticos de autismo precisariam ser padronizados e realizados por profissionais altamente treinados, garantindo uniformidade nos critérios e nos métodos.

Já se a proposta fosse estudar a influência da alimentação — como o consumo de ultraprocessados, deficiências nutricionais ou exposição a aditivos químicos — o desafio seria ainda maior. A dieta humana é extremamente variada e mutável, o que exigiria um controle minucioso da alimentação diária de milhares de pessoas por um período prolongado.

Além disso, seria necessário combinar esses dados com informações genéticas, ambientais e sociais para que as conclusões fossem realmente válidas.

Outra metodologia, mais rara, mas teoricamente possível, envolveria o uso de políticas públicas como parte da pesquisa: selecionar cidades, por sorteio, para implementar restrições rigorosas ao uso de certos produtos suspeitos (como microplásticos, pesticidas ou aditivos), enquanto outras permaneceriam sem mudanças.

Após anos, avaliações diagnósticas homogêneas entre as populações poderiam indicar se houve alguma diferença significativa. Todos esses exemplos têm algo em comum: são caros, longos e complexos. Não há atalhos.

Diante dessa realidade, soa no mínimo ingênuo o anúncio feito pelo Secretário de Saúde dos EUA, Robert F. Kennedy Jr., de que até setembro serão publicados estudos capazes de apontar quais toxinas seriam as responsáveis pela “epidemia de autismo”. A própria ideia de epidemia, nesse contexto, já carrega um equívoco: esse termo se aplica a doenças infecciosas, não a condições de base genética como o TEA.

O que os melhores estudos científicos mostram até agora é que cerca de 98% da influência no autismo está associada a fatores genéticos. O aumento nos diagnósticos tem sido explicado principalmente pela ampliação dos critérios diagnósticos, pelo maior acesso aos serviços de saúde e pela formação mais qualificada dos profissionais.

Isso não significa, é claro, que fatores ambientais devam ser descartados. A ciência não trabalha com certezas absolutas e investigar possíveis influências do ambiente é legítimo e necessário. Mas esse tipo de pesquisa, como vimos, leva tempo, muito tempo. E qualquer promessa de respostas rápidas, sem um projeto dessa magnitude, não é ciência — é bravata.

Entender as causas do autismo — seja pela genética, pelo ambiente ou pela interação entre os dois — exige respeitar o tempo da ciência, reconhecer a complexidade dos fatores envolvidos e a necessidade de controles rigorosos e o trabalho conjunto de especialistas de diversas áreas.

Por isso, quando ouvirmos promessas de descobertas miraculosas em poucos meses, é bom lembrar: nove mulheres não geram um bebê em um mês. E nem todos os cientistas do mundo, reunidos, conseguiriam responder uma questão tão complexa quanto essa em tão pouco tempo.

A ciência é lenta. E talvez seja justamente essa lentidão que a torna o caminho mais confiável.

Lucelmo Lacerda é doutor em educação, pesquisador, ativista do TEA e autor de “Crítica à pseudociência em educação especial: Trilhas de uma educação inclusiva baseada em evidências”.

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